CLICHÊS DE PROPAGANDA - Parte 1
#1 - "Nossos seres humanos são melhores do que os outros."
O produto pode ser um creme contra acne, uma tesoura para pêlos do nariz, um instrumento de tortura, não importa. A pessoa que nos comerciais utiliza o produto anunciado, e não o produto concorrente, sempre será mais bonita, mais bem vestida e mais simpática, ou simplesmente menos ridícula ou espalhafatosa. Este talvez nem seja um clichê, e sim uma regra absoluta das Ciências da Publicidade que deve ser seguida em todos os comerciais produzidos, especialmente se considerarmos que comerciais são poderosas armas de dominação ideológica a serviço do poder hegemônico. As estéticas e os comportamentos considerados "apropriados" para a sociedade são associados ao produto que está sendo vendido, servindo ao duplo propósito de aumentar os lucros de determinadas empresas e de consolidar nos expectadores os padrões de beleza e normalidade que lhes foram impostos. Isso ocorre porque a propaganda é construída de forma que as pessoas se identifiquem com aquele personagem idealizado, o que utiliza o produto anunciado. Em suma: o público alvo de 99% dos comerciais produzidos hoje em dia é gente que se acha.
EXEMPLO 1 - Comercial do Crunch Cereal
A câmera focaliza um jovem sentado numa mesa, servindo para si mesmo uma tigela de Crunch Cereal para seu café da manhã. Sua atitude e expressão facial, bem como seu modo de vestir, revelam que ele não é muito diferente da maioria dos rapazes normais de sua faixa etária. A porta do quarto se abre e dela surge um outro rapaz, provavelmente da mesma idade, acompanhado de três garotas bonitas. O jovem que acaba de entrar está vestido de maneira nada convencional, especialmente para aquela hora da manhã: um terno branco, uma camiseta com tons berrantes e óculos escuros coloridos. Ele faz então uma piada sobre o fato de que ele está acompanhado de três garotas, enquanto o outro rapaz está só. O desagrado é visível na expressão facial do protagonista. De repente, uma coisa fantástica acontece: ao mastigar os primeiros flocos de arroz da sua tigela de cereal, os óculos escuros do rival se despedaçam espontaneamente. Uma coincidência? Há apenas uma forma de descobrir... Ao mastigar outra porção de seu Crunch Cereal, desta vez são os sapatos dele que estouram. "Mas é claro", ele pensa, "as ondas ultrassônicas emitidas quando eu mastigo meu Crunch Cereal destroem seletivamente as posses materiais do meu inimigo!". Mais algumas colheres de cereal depois e desta vez são as roupas e o carro do rival que levam a pior. As garotas bonitas que antes o acompanhavam parecem horrorizadas ao descobrir que ele é mais baixo do que o normal. Parece ser apenas uma questão de tempo para que elas comecem a se interessar pelo rapaz que está sentado na frente delas, provavelmente mais alto do que o bufão que acaba de sair pela porta. Ele recebeu a punição adequada por seu pecado de se vestir de forma diferente e por seu comportamento nada agradável. Mais ainda: por ele não ter tido a idéia de utilizar os poderes do Crunch Cereal para revidar os ataques.
EXEMPLO 2 - Comercial da Skol
O cenário é o velho oeste. Dois bandidos estão prestes a serem executados, à forca, por seus crimes. Uma multidão assiste ao espetáculo. O juiz então se aproxima para perguntar aos réus quais seriam seus últimos pedidos; surpreendentemente, o juiz, e todos os presentes, falam Português, a despeito da localidade e da época histórica. O primeiro bandido, um sujeito grande, despenteado e com um certo descuido com a condição de sua pele facial, diz com sua voz grave e truculenta: "Em quero uma cerveja, mas não pode ser Skol!". As pessoas se surpreendem com a natureza pouco ortodoxa de seu último desejo, mas fazem cumprir as palavras do bandido. Ao primeiro gole da cerveja de marca desconhecida, um bizarro acontecimento acaba salvando a vida do condenado: a cerveja parece ter se solidificado na forma de um quadrado em algum lugar no trajeto da garganta do indivíduo, o que, por alguma razão desconhecida, acaba impedindo a asfixia letal pela corda da forca. Curiosamente, ele ainda consegue emitir sons para tripudiar sobre o outro condenado, que provavelmente não usufrui da mesma esperteza e frieza de pensamento que salvaram a vida do primeiro bandido. O juiz pergunta então ao segundo bandido, um moço jovem, saudável, com um penteado da moda e um rosto levemente não barbeado que lhe dão um aspecto descolado, qual seria seu último desejo. "Uma Skol", ele diz, "posso até morrer, mas eu quero uma Skol". A multidão se entreolha. Quase imediatamente eles se dão conta do terrível erro que estavam prestes a cometer. Gritos começam a ecoar para que o rapaz seja salvo, obviamente ele é uma pessoa normal! Não há nenhuma razão para que ele seja executado! Não importa que crime ele cometeu, ele é bonito, simpático e bebe a cerveja que dentro do universo do comercial representa a ideologia hegemônica da comunidade local. O outro bandido fica entregue à fome e aos abutres.